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Crédito em alta gera endividamento

10/04/2007 às 08h50

Jornal do Commercio Brasil 09/04/2007 - Zulmira Furbino            

Quando o compositor Chico Santana, da velha guarda da Portela, compôs um samba de protesto gravado por Beth Carvalho em 1977 e conhecido em todo país pelo famoso verso "de que me serve um saco cheio de dinheiro pra comprar um quilo de feijão", certamente não imaginava que 30 anos depois o dinheiro virtual, mais conhecido como crédito na praça, se transformaria numa panacéia para estimular o consumo e também numa dor de cabeça para pessoas financeiramente descontroladas. A ampliação do crédito, iniciada em 2005, aumentou o nível de endividamento da população, tanto que os assuntos financeiros já respondem por 42% da demanda do Procon de Belo Horizonte, atingindo não só as camadas mais pobres, mas pessoas de maior poder aquisitivo.

Consumidores das classes A e B já somam 28% do total de reclamações ligadas às finanças registradas na instituição. Na prática, porém, a proporção de pessoas dessa faixa de renda que enfrentam problemas com dívidas contraídas junto a administradoras de cartão de crédito, bancos, financeiras e afins é muito maior do que aquele que aparece em qualquer estatística oficial dos órgãos de defesa do consumidor. Segundo a coordenadora do Procon, Stael Viana, pessoas das classes A e B não costumam procurar os Procons para registrar suas queixas. "Elas preferem fazer consultas via e-mail porque, na maioria dos casos, pagam o seu próprio advogado", diz. Ainda de acordo com ela, entre as pessoas endividadas que procuram a instituição, a maior parte sofre de compulsão pelas compras.

A vontade insaciável de consumir e a facilidade de acesso ao crédito levaram a dentista e designer de jóias, Cláudia Regina Oliveira - renda familiar entre R$ 9 mil e R$ 10 mil - a ficar totalmente endividada entre 2004 e 2007. Além de uma dívida de R$ 6 mil nos cartões de crédito, ela fez dois empréstimos pessoais que somam R$ 9 mil. No primeiro, para um empréstimo de R$ 5.000, a ser pago em 18 parcelas de R$ 750, os juros cobrados são de R$ 997,96. No segundo, o empréstimo é de R$ 4.000 e está sendo pago em 12 parcelas com juros totais de R$ 629,60. Mas as dívidas não terminam aí. Somente no mês de abril, a dentista disparou 15 cheques pré-datados, num valor total de R$ 2.000. Em março foram 13 cheques desse tipo, que somaram R$ 1.300 e para maio já são oito, num valor de R$ 1.200.

anotações. Perdida em vários cadernos nos quais anota separadamente os empréstimos, as despesas da casa e o fluxo de gastos com compra de material e a venda das mercadorias que fabrica, a designer de jóias e dentista conta que, no início do mês, a soma das parcelas a serem pagas pelas dívidas voluntárias contraídas e as despesas da casa sempre ultrapassam os limites da receita familiar. Resultado: o orçamento nunca sai do vermelho. "Isso tem afetado a vida da minha família, porque ficamos tensos. Além disso, meu marido, responsável por toda a receita da casa, recebe seu pagamento em horas trabalhadas e precisa se esforçar cada vez mais para dar conta das despesas. Sei que devo deixar de contrair dívidas, mas é difícil parar de consumir. Compro sempre que estou triste", justifica.

Para Stael Viana, do Procon, a ampliação da oferta de crédito é o combustível que alimenta a fogueira do consumo. "Recebemos cartões de crédito em casa sem prévia solicitação, as ofertas de crédito aparecem em todos os extratos bancários e estamos expostos de forma excessiva à publicidade das compras parceladas", observa. De 2005 para cá, o problema se agravou, acredita o consultor de finanças Erasmo Vieira. "A oferta de crédito está crescendo mais do que a renda e o emprego, o que multiplica o número de inadimplentes",diz Vieira.

Juros, encargos e multas elevam a dívida

Nos cálculos da Associação Nacional dos Usuários de Cartão de Crédito (Anucc), os juros compostos, encargos financeiros e multas decorrentes de atrasos de pagamento elevam uma dívida em até 55% num prazo de 90 dias. Isso quer dizer que uma compra de R$ 2.000 com vencimento no início de abril junto a uma administradora de cartão de crédito vai se transformar numa dívida de R$ 3.100 em julho caso não seja quitada à vista. "O comprometimento alto no cartão de crédito é um dos principais indicadores de que uma pessoa está enfrentando dificuldades financeiras", diz a presidente da Anucc, Kássia Correa.

O advogado D. N. J., que prefere não ser identificado, é uma prova cabal de que ela está com a razão. Com uma renda pessoal líquida de R$ 6.000, ele tem nada menos do que 80% de sua receita comprometida com o pagamento de empréstimos e de cartões de crédito. D. N. J. conta que esse descontrole começou há dois anos e foi agravado com a ampliação do crédito na praça. "Se não fosse tão fácil conseguir crédito, eu não iria buscar", acredita. O advogado tem cinco cartões de crédito, com limites individuais entre R$ 2.000 e R$ 4.000. "Uso todos, mas não chego ao limite. Procuro pagar o valor das compras à vista, mas nem sempre consigo. Quando isso acontece, pago o mínimo até conseguir quitar tudo".

Outra compulsiva por compras que também pede para não ser identificada é a professora universitária M. P. S. - renda de R$ 5.000 -, que se auto-define como uma que sempre gastou mais do que tem. Foi o que ocorreu quando ela adquiriu seu último automóvel, no valor de R$ 42 mil, dos quais R$ 22 mil foram financiados em 36 parcelas de R$ 736. "Dei R$ 20 mil de entrada e, se não fosse a facilidade em obter crédito, teria comprado um carro mais barato", diz a professora, que todos os meses utiliza todo o limite do cheque especial.

Apesar de ter 70% da renda comprometida com dívidas pessoais, pagamento do financiamento do veículo e cartões de crédito, M. P. S. evita se colocar como uma vítima indefesa da oferta de crédito. Para ela, o cartão não chega a ser um problema. "Com ele, pago despesas como combustível, supermercado, remédios e roupas. Por outro lado, tenho vantagens pois ganho milhas de viagens aéreas. Ainda que o meu salário fique comprometido lá na frente, não compro só porque tenho cartões. Se eles não existissem, eu compraria com cheques pré-datados. Sei que sou descontrolada financeiramente, mas a responsabilidade é só minha", sustenta. Ainda na avaliação dela, os financiamentos são uma forma de aquisição de patrimônio para as pessoas que não têm disciplina para poupar.

Consumo compulsivo afeta o dia-a-dia

No livro "O Valor do Amanhã - Ensaio Sobre a Natureza dos Juros", o economista Eduardo Giannetti, sustenta que a questão dos juros não se restringe ao mundo das finanças, mas atinge às mais diversas e surpreendentes esferas da vida prática, social e espiritual, começando pelo processo de envelhecimento a que todos os corpos estão sujeitos. Como exemplos de situações da vida cotidiana nas quais se manifesta essa realidade, o economista cita a prática de dieta, a dedicação aos estudos e os exercícios físicos para melhoria da saúde.

Ele defende, por exemplo, que as altas taxas de juros no Brasil possuem raízes comportamentais e institucionais ligadas à formação da sociedade. Segundo Giannetti, desde o momento em que aprendeu a planejar sua vida, o homem antecipa e projeta seus desígnios usando essa prática. "A noção de juros já está inscrita no metabolismo dos seres vivos e permeia boa parte do seu repertório comportamental", sustenta. A questão é como fazer os juros trabalharem a favor da qualidade de vida e não como um elemento de pressão que leva ao estresse e ao adoecimento.

O presidente da Cooperativa de Crédito da Justiça do Trabalho de Minas Gerais, Antônio Cláudio dos Santos Rosa, conta que dos 2.000 cooperados, todos de classe média alta, cerca de 15% estão enfrentando problemas de descontrole financeiro. "Eles procuram a cooperativa como uma forma de contrair empréstimos mais baratos. São pessoas que tomam empréstimos entre R$ 5 mil e R$ 40 mil", afirma. Preocupada com a educação financeira dos associados, a instituição contratou um consultor de finanças para prestar orientação aos servidores. "Nossa preocupação é que eles levem uma vida financeira controlada e saudável", explica. Para ele, a margem para o endividamento mensal de uma pessoal está na casa dos 30% do salário. Acima desse patamar, a dívida começa a comprometer o orçamento.

Alerta para não cair na armadilha do crédito fácil

Crédito consignado descontado na folha de pagamento, ampliação do número de parcelas nos financiamentos, oferta de crédito pessoal imediato nas instituições financeiras, cartão de crédito recebido em casa sem solicitação prévia, saque de dinheiro em lojas de departamento via cartão da própria loja e vendas sem entrada com primeira parcela a ser paga até oito meses depois da efetivação da compra, são alguns dos exemplos de como a ampliação da oferta de crédito se materializa na vida do consumidor.

"Entre as pessoas de maior poder aquisitivo o endividamento é muito alto. Fica fácil utilizar vários cartões de bandeiras diferentes, com datas de pagamento distintas. E isso também é oferta de crédito", diz o consultor de finanças Erasmo Vieira. O agravante, segundo ele, é que nesses casos a taxa de juros é muito alta. De acordo com a Fundação Ipead, vinculada à UFMG, em março deste ano a média de juros de cartões de crédito praticados em Belo Horizonte ficou na casa dos 11,2% ao mês, contra 1,26% para a aquisição de imóveis prontos e 1,76% para a compra de automóveis novos financiados pelas montadoras.

estatística. A compulsão pelas compras está na moda e acomete principalmente as mulheres, mas os homens também caem nessa armadilha, avalia a psicoterapeuta Claúdia Prates. Segundo ela, o problema já é considerado uma doença, geralmente ligada ao transtorno bipolar. "A pessoa varia da euforia à depressão e, quando está eufórica, faz o que pode para sedar a ansiedade, partindo para as compras", observa. Para ela, essa impulsividade pelo consumo é uma das causas da incapacitação no mundo e esconde insatisfações com a vida pessoal.

"No mundo de hoje o nível de insatisfação afetiva é enorme. A tristeza causada por esse tipo de frustração acaba sendo compensada pelo "eu mereço", mas no caso das mulheres elas dificilmente compram de forma descontrolada com o próprio dinheiro", explica a especialista. Ela acredita que a facilidade cada vez maior de acesso ao crédito causa no consumidor a impressão de que ele não está pagando pelo produto que adquire. "Essa facilidade, somada à insatisfação pessoal cada vez maior, leva à compulsão. Desse modo, nunca se acaba de pagar a dívida e isso tem muito a ver com o fato de que o amor está cada dia menos disponível no mundo. Na falta dele, as pessoas procuram outras formas de embelezar a sua vida", analisa.

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