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Risco de insegurança jurídica no crédito
Discute-se no Ministério da Economia, com a melhor das intenções, um anteprojeto de medida provisória que simultaneamente proíbe o credor de uma garantia mobiliária em registrar o contrato no cartório do seu próprio domicílio, e o registro de imóveis analisar juridicamente os originais que transferem a propriedade e constituem garantias imobiliárias.
Ambas as proibições reduzem a segurança jurídica do crédito em nosso país e modificam cerca de cem anos de conteúdo normativo estável. Ora, vale lembrar que quando prescrições normativas funcionam bem, por tanto tempo, há sempre boas razões para mantê-las!
Para que a sociedade tenha conhecimento de que bens já foram dados em garantia funciona o sistema de registros públicos. Pois para esta valer contra todos os membros de uma sociedade é preciso que haja condições reais de conhecimento da garantia.
O registro em cartório, portanto, é feito no interesse de toda a sociedade, ou de todo um mercado, para que ninguém seja lesado ao negociar sem o conhecimento, real ou potencial, de que o bem já está vinculado a um credor.
No caso de imóveis, as garantias podem ser consultadas no cartório da localização do bem. No caso dos bens móveis, no cartório de títulos e documentos. Como os contratos estão sob a guarda do credor e são registrados no seu interesse, é evidente a competência do cartório do seu domicílio.
O registro da garantia exclusivamente no domicílio do credor era a regra do Decreto Lei nº 911/1969, na gestão do ministro Delfim Netto, que instituiu a alienação fiduciária dos bens móveis. Permite o menor prazo para obtenção do primeiro registro da garantia, essencial para a segurança do crédito no caso de um devedor em processo de insolvência.
A competência do registro deve incluir, ainda, o domicílio do devedor, a fim de o terceiro de boa-fé pesquise a situação da pessoa com quem vai contratar no cartório do seu domicílio.
Esses registros não são excessivos. Nenhum credor quer discutir judicialmente a boa-fé de um terceiro e arriscar perder a garantia em face de um devedor inadimplente.
A lei de 1892 permitia registro em qualquer cartório para a eficácia do contrato contra terceiros. Com isso, era comum que os terceiros alegassem boa-fé e desconstituíssem judicialmente as garantias, alegando que lhes era impossível tomar conhecimento dos contratos.
O Decreto nº 4.857, de 1939, mantido integralmente na vigente Lei de Registros Públicos de 1973, para acabar com o risco do crédito e a desconstituição das garantias, determinou o registro do domicílio de todas as partes contratantes, credor e devedor.
Somente assim o crédito mobiliário passou a ser efetivamente seguro em uma discussão judicial. Por isso, o registro no domicílio do credor tem sido uma norma jurídica estável em nosso direito.
A história nos permite antever que haverá brechas para alegações de desconhecimento do registro e enfraquecimento das garantias que não conseguiram registro a tempo em face de devedores insolventes.
A insegurança jurídica ao crédito imobiliário não é menor. No modelo proposto, o cartório registraria apenas resumos digitais apresentados unilateralmente, por um interessado ou qualquer uma das partes. O cartório não mais verificaria a correção jurídica do contrato que transfere a propriedade das famílias brasileiras.
Podemos adiantar as consequências dessa proposta. Primeiro, os registradores não serão mais responsáveis pela correção dos atos de registro. A responsabilidade civil e criminal passará dos cartórios para a pessoa que apresentar o resumo digital ao registro de imóveis.
Se alguém perder sua propriedade por um erro do resumo digital somente poderá demandar judicialmente o apresentante desse resumo, seja este uma instituição financeira ou um particular qualquer. O cartório já não terá mais nada a ver com isso.
Segundo, a porta do registro de imóveis estará aberta para recepcionar todo o tipo de fraudes. Qualquer apresentante poderá modificar a situação jurídica alheia ou própria mediante simples apresentação de resumo eletrônico.
O Brasil será o paraíso para aqueles interessados em sumir com os próprios bens do alcance de credores ou dos estelionatários interessados em vender os bens alheios. Os cartórios, que no modelo atual impedem que fraudes ocorram, estarão impedidos de cumprir sua função institucional.
Para os proprietários, credores e compradores essa proposta cria risco e diminui a segurança. O Custo Brasil aumentará com o fim da análise jurídica dos contratos pelos registradores, piorando ainda mais o ambiente de negócios.
Economias desenvolvidas, como Alemanha, Inglaterra e Espanha, contam com registros de direitos, como o que temos hoje no Brasil há mais de um século. Nesses países é justamente a análise jurídica dos registradores que garante a confiança e a certeza na contratação sobre direitos imobiliários.
Os tempos que vivemos pedem responsabilidade, prudência e segurança nas propostas de mudança legislativa. Nem toda solução eletrônica é segura, eficiente ou boa para o Brasil.
Certamente haverá um aprofundamento da proposta, em benefício do crédito, das garantias, da segurança jurídica e da continuidade da atividade produtiva, a fim de tornar o Brasil mais confiável no cenário nacional e internacional.
Armando Luiz Rovai é doutor em Direito pela PUC-SP, foi presidente da Junta Comercial do Estado de São Paulo e do Ipem/SP e secretário Nacional do Consumidor - Senacon