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Lei do superendividamento e seus impactos na rotina das empresas
Foi sancionada e promulgada, em 01 de Julho do corrente ano, a Lei Federal 14.181, que alterou o Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal 8.078/1990) para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e especialmente dispor sobre a prevenção e o tratamento a situações qualificadas como de SUPERENDIVIDAMENTO.
Tal ato normativo, que possivelmente possuiu sua tramitação e edição aceleradas em razão das más condições macro econômicas do país e de seu agravamento em razão da pandemia global, num primeiro momento, conforme razoavelmente veiculado na imprensa, trouxe uma impressão de que o legislador buscava assegurar e adicionar ao código de consumo um conjunto de novas medidas e disposições preventivas para que se evitasse ou mitigasse constante e progressiva situação de endividamento do consumidor brasileiro, problema cada vez mais persistente na vida nacional, mas a leitura e reflexão de seu texto revela que aquele foi bem mais ousado do que inicialmente se supunha, já que introduz, no Direito Brasileiro, instrumentos jurídicos que vão muito além da prevenção, implicando na efetiva possibilidade de intervenção coativa do Poder Público, especialmente o Poder Judiciário, em relações contratuais de fornecimento de produtos e serviços já consolidadas.
É certo que não é de hoje que o direito nacional admite a possibilidade de revisão de contratos de consumo ou de outra natureza quando presentes situações de abuso de direito, hipossuficiência, dentre outras, mas salta os olhos o notório impacto que mencionada nova lei poderá causar a esfera das empresas fornecedoras, o que, de certo, ensejará a adoção imediata de cautelas e medidas preventivas, operacionais e jurídicas.,
Conforme esse novo regramento, o superendividamento passa a ser qualificado como a impossibilidade manifesta do consumidor, pessoa física, com base num parâmetro de boa fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, vencidas ou vincendas, sem que haja comprometimento a um mínimo existencial a ser ainda definido em regulamentação infra legal. Dívidas, para tais fins, envolve quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrente de relação de consumo, inclusive operações de créditos, compras a prazo e serviços de prestação continuada, sendo, porém, expressamente excluídas as situações de fraude ou má fé e contratação de produtos e serviços de luxo ou alto valor.
Dentre os dispositivos que admitem a possibilidade de intervenção judicial, o primeiro deles é aquele contido no parágrafo único do novo artigo 54-D do Código do Consumidor, que estatui que o descumprimento a uma série de novas regras de conduta e comportamento quanto a oferta de bens e serviços poderá acarretar, possivelmente em sede de ações individuais ou coletivas, a “redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor.”
Mas o dispositivo que certamente demandará mais atenção é aquele previsto no novo artigo 104-A daquele mesmo código, que introduz a figura da CONCILIAÇÃO NO SUPERENDIVIDAMENTO, PROCESSO DE REPACTUAÇÃO DE DÍVIDAS E PLANO JUDICIAL COMPULSÓRIO.
Sem possuir pretensão, através desse artigo, de se ingressar na constitucionalidade de tais dispositivos, que possivelmente será reconhecida tendo em vista os inúmeros outros instrumentos semelhantes previstos no Direito Brasileiro como forma de assegurar proteção a sujeitos de direito dotados de condições peculiares, tais como a Lei de Recuperação Judicial, as inúmeras leis de concessão de benefícios tributários, dentre muitas outras, e sem prejuízo dos possíveis vários entendimentos jurisprudenciais ainda a serem emitidos sobre o tema, surpreende a dinâmica e extensão de tais mecanismos.
No tocante ao aludido procedimento de CONCILIAÇÃO, qualquer consumidor, desde que obviamente revestido das condições legais de superendividado, poderá requerer a instauração de PROCESSO DE REPACTUAÇÃO DE DÍVIDAS, cuja finalidade será a designação de uma audiência conciliatória que necessariamente contará com a presença de TODOS os credores, no qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 05 anos, preservando-se o mínimo existencial (que ainda será definido em regulamento) e as garantias e as formas de pagamento orginalmente pactuadas.
Primeiro ponto cuja atenção ora se destaca é a obrigatoriedade quanto a participação de todos os credores naquele ato, cujo não comparecimento injustificado, seu ou de procurador com poderes especiais e plenos de transação, acarretará (i) SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO DÉBITO, (ii) INTERRUPÇÃO DOS ENCARGOS DA MORA e (iii) SUJEIÇÃO COMPULSÓRIA AO PLANO DE PAGAMENTO DA DÍVIDA que vier a ser acordado ou coativamente imposto pelo juiz conforme situações que se explanará mais adiante, se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor, devendo o pagamento a aquele credor ausente ser estipulado para ocorrer apenas após o pagamento aos credores presente na audiência.
Aqui já se vislumbra a necessária e extrema atenção que as empresas deverão possuir, uma vez intimadas, para efeito de programação operacional de comparecimento a tais atos e para efeito de preparação de um corpo de representação técnico com instrução, autonomia e capacidade para efetivamente transigir, algo que certamente não será simples para aqueles prestadores de bens e serviços e larga escala, que precisarão se estruturar para atender em tese tais situações em qualquer comarca do país.
Aquele mesmo artigo 104-A prossegue discorrendo que, em caso de obtenção de conciliação COM QUALQUER UM DOS CREDORES, a sentença judicial que homologá-la terá eficácia de título executivo e coisa julgada (imutabilidade) e descreverá o plano de pagamento da dívida.
O seguinte artigo 104-B, por sua vez, regra a situação em que não há êxito na conciliação em relação a qualquer outro credor. Aqui, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará um novo tipo de processo judicial, denominado PROCESSO POR SUPERENDIVIDAMENTO, em que todos os credores que não tenham integrado ao acordo serão citados para que, em 15 dias, apresentem as suas razões e documentos pelos quais negam a aderir ao plano proposto, sendo que, na sequência, poderá nomear um administrador que, em prazo de até 30 dias, apresentará um plano de pagamento que apresente medidas de temporização ou de atenuação de encargos.
Com nomeação de administrador ou não, na sequência, o magistrado emitirá um PLANO DE PAGAMENTO COMPULSÓRIO, que propiciará a revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes e assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual, em, no máximo, 5 (cinco) anos, sendo que a primeira parcela será devida no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado de sua homologação judicial, e o restante do saldo será devido em parcelas mensais iguais e sucessivas.
Como se vê, referido novo procedimento incorporado no direito brasileiro, admitirá mais uma situação de intervenção pública nas relações de consumo redimensionando coativamente as obrigações originalmente constituídas pelas partes, – o que torna impossível que não se trace um paralelo, resguardadas as devidas peculiaridades, com o regime de Recuperação Judicial e Extrajudicial das empresas – e novamente demandará acentuada atenção de fornecedores de bens e serviços que novamente serão obrigados a se ajustar para se adaptar a um novo regime jurídico e a uma nova sistemática de processo judicial cuja não adoção das devidas cautelas possuirá o condão de novamente impactar negativamente sua operação e resultados financeiros.
Por fim, não pode deixar de merecer destaque que estão expressamente excluídos do mencionado processo de repactuação de dívidas, ainda que decorrentes de relações de consumo, aquelas oriundas de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários de crédito rural, além é claro daquelas situações em que há comprovada má-fé ou intenção de não pagamento.
*Roberto Poli Rayel Filho, advogado graduado pela Faculdade de Direito de Bauru. Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – COGEAE. Membro da Associação dos Advogados do Estado de São Paulo. Ex-head jurídico de empresa multinacional. Árbitro do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio e Indústria Brasil China (Associada a Câmara Arbitral de Shangai)