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Endividamento bate recorde em 2020, mas inadimplência recua
Em 2020, as famílias bateram recorde de endividamento e destinaram parcela maior da renda para o pagamento de débitos. A despeito disso, a inadimplência caiu por causa, entre outros motivos, da renegociação de dívidas e carência no pagamento de parcelas. Assim, as famílias entraram em 2021 em situação de crédito mais confortável que na crise anterior, de 2015-2016. Mas a perspectiva de aumento de juros, o desemprego em alta e o fim dos programas de transferência de renda podem se traduzir em um cenário menos favorável. Economistas preveem aumento na inadimplência, mas não para níveis vistos há cinco anos.
Segundo o Banco Central, o endividamento das famílias no sistema financeiro chegou a 50,26% em outubro (dado mais recente), o maior percentual desde 2005, primeiro ano da série, e um aumento de 5,47 pontos percentuais com relação ao mesmo período em 2019, quando era de 44,79%. Este salto na comparação anual é também o maior da série histórica. Da alta de 5,47 pontos, 3,17 pontos são de dívidas em geral, e 2,3 pontos, do financiamento imobiliário.
As famílias também viram crescer a parcela da renda comprometida com o pagamento de dívidas, mas em menor magnitude: de 20,14% para 21,65%, entre outubro de 2019 e de 2020. Já a inadimplência no crédito livre para pessoa física caiu desde o pico recente de 5,6%, em maio, e chegou a 4,5% em outubro. Em novembro, desceu a 4,3%. Em 12 meses, a queda é de 0,7 ponto percentual, segundo o BC. Na crise anterior, em 2015-2016, o endividamento caiu e a inadimplência subiu.
Flavio Calife, economista da Boa Vista SCPC, afirma que as renegociações de empréstimos a partir do segundo trimestre aliviaram a inadimplência das pessoas físicas, mas o aumento das provisões dos bancos mostra que esse indicador deve subir e se manter em nível mais elevado. “Deve ficar em torno de 5,5%, sem atingir os picos anteriores, que giravam em torno de 7%”, diz. Para ele, não é preocupante.
Levantamento inédito feito pela Boa Vista também mostrou que o auxílio emergencial pode ter contribuído para reduzir os atrasos de pagamentos. Em abril os atrasos acima de 15 dias chegaram a 25,8% entre os beneficiados pelo auxílio e a 17,7% entre o consumidor geral - diferença de 8 pontos percentuais. Em outubro a discrepância caiu para 2,7 pontos, com os atrasos entre beneficiados chegando a 18,3% e a 15,6%, respectivamente.
O endividamento é calculado pelo BC levando em conta a massa de renda ampliada disponível (salários, aposentadorias, benefícios, etc.) acumulada em 12 meses e o saldo das dívidas das famílias no mês de referência. Esse indicador cresceu porque o saldo das dívidas aumentou 9% até outubro e a massa de renda cresceu entre 5% e 6%. Sem os programas de auxílio, a massa de renda teria caído em torno de 5%. O aumento do saldo, por sua vez, tem relação com o forte aumento nas renegociações de dívidas durante a pandemia. Assim, apesar da crise, os indicadores de crédito das famílias não se deterioraram em 2020.
Na série calculada pela Tendências Consultoria, que leva em conta a massa ampliada de renda habitual, o endividamento também cresce, mas em magnitude menor: de 44,7% para 45,2% entre setembro de 2019 e setembro de 2020, último dado disponível. Já o comprometimento tem uma pequena queda, de 23,7% para 21,2%.
O comprometimento, que leva em consideração juro e prazo, foi especialmente beneficiado pelo recuo do juro, afirma Isabela Tavares, economista da consultoria. Houve queda de 7,5 pontos percentuais no custo do crédito para pessoa física em 12 meses até outubro, para 35,2% ao ano. “Houve medidas de liquidez, redução de custos operacionais via redução do compulsório, queda da inadimplência com a renegociação de dívidas, Selic mantida em níveis mínimos. Esse conjunto permitiu a queda do juro e ajudou a frear o comprometimento da renda com o pagamento de dívidas”, afirma Isabela.
O endividamento e o comprometimento devem continuar a crescer em 2021, mas agora puxados sobretudo pela queda da renda, já que os auxílios terminaram, e pela provável elevação da taxa básica de juros a partir do segundo semestre. Para Calife, depois da forte queda vista em 2020, os spreads devem subir. “A alta da Selic vai encarecer a captação dos bancos e a inadimplência vai afetar o custo do crédito”. Ambos os economistas não vêm níveis de endividamento e comprometimento preocupantes, porque há uma expectativa de volta, ainda que gradual, da criação de empregos.
“As medidas fiscais e monetárias ajudaram não só o endividamento, mas a inadimplência, o consumo. Isso deve ser revertido em 2021. Deve ter um cenário um pouco pior, mas sem uma deterioração importante”, diz Isabela. A Tendências estima aumento de 7,7% na concessão de crédito livre para pessoa física em 2021 e um leve crescimento na inadimplência para pessoa física de 4,5% para 5%.
Os riscos neste cenário são uma deterioração adicional no mercado de trabalho e um aumento maior nos juros por causa da inflação, diz Calife.
Izis Ferreira, economista da Confederação Nacional do Comércio (CNC), diz que, além de ter dado fôlego ao consumo, o auxílio emergencial pode ter ajudado no pagamento de dívidas. Entre a população de renda mais alta, a sobra de recursos pela redução no consumo de serviços pode ter aberto espaço para quitar contas, além de ter gerado poupança precaucional. Com a incerteza, parte das pessoas preferiu poupar a consumir. “No início do ano, principalmente, o orçamento das famílias vai ficar mais pressionado com o fim do auxílio e os compromissos financeiros típicos do período.”
Pesquisa mensal da CNC mostra que, depois de chegar o recorde de 67,5% em agosto, o percentual de consumidores que se declararam endividados fechou 2020 em 66,3%. Mas acima dos 65,6% do mesmo período em 2019.