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Dívida global bate recorde, traz risco de crise e põe crescimento em xeque
A pandemia da Covid-19 acelerou em 2020 a tendência global de endividamento de governos e empresas e levou o mundo ao maior volume de dívidas da história.
Como consequência, o crescimento global nos próximos anos pode ser ainda menor do que antes da pandemia, com elevado risco de crises financeiras pelo caminho.
Entre 2011 e 2019, as economias avançadas já apresentavam baixo crescimento, de 1,9% ao ano, em média. Desde os anos 1980, todos os booms de endividamento —e o atual foi extremamente agudo— acabaram levando a crises em várias partes do mundo.
Atualmente perto de US$ 280 trilhões, as dívidas globais atingiram em 2020, em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) mundial, mais do que empresas, cidadãos e países deviam ao final da Segunda Guerra —conflito de 1939 a 1945 que causou perdas materiais e humanas sem precedentes, mas seguido por fase de forte crescimento.
Segundo o IIF (Institute of International Finance, que reúne 400 bancos em 70 países), a dívida global aumentou mais rápido nos últimos anos e além do que se previa no início da pandemia.
Sem precedentes na comparação com períodos anteriores, o salto de 2016 até ao fim de 2020 foi superior a US$ 50 trilhões (mais de US$ 15 trilhões só no ano passado). Entre 2012 e 2016, o aumento havia sido de US$ 6 trilhões.
No total, o mundo deve hoje, em média, o equivalente a cerca de 365% de tudo o que produz em um ano —435% do PIB nos países ricos e 250% nos em desenvolvimento.
Para governos de nações emergentes como o Brasil, essa montanha de débitos exigirá, já em 2021, um grande esforço de refinanciamento. Juntas, as 30 maiores nações em desenvolvimento têm cerca de US$ 7 trilhões em débitos estatais vencendo neste ano.
No Brasil, com R$ 5 trilhões de dívida pública federal, R$ 1,4 trilhão (28%) vencem em 2021.
Hoje rolada em prazos cada vez mais curtos, a dívida brasileira pode aumentar se o Banco Central iniciar um processo de alta dos juros, o que dependerá da inflação —pressionada não pelo aumento da atividade, mas pelo valor do dólar e dos preços de commodities agrícolas, cotadas na moeda americana.
Segundo organismos internacionais como o FMI (Fundo Monetário Internacional), o Banco Mundial e o IIF, a dívida global no patamar atual tem potencial para desacelerar o ritmo de crescimento mundial e, à medida que a inadimplência de créditos privados aumentar, obrigar governos a se endividar mais para resgatar os falidos.
“Uma crise silenciosa está ganhando força e pode prejudicar a recuperação nos próximos anos. Embora [esse tipo de crise] nem sempre inclua pânico e corridas, ela impõe custos múltiplos”, afirma Carmen Reinhart, economista-chefe do Banco Mundial.
“A reestruturação e a recapitalização dos bancos para restaurar a solvência podem ser caras para governos e contribuintes, e os novos empréstimos tendem a permanecer deprimidos, reduzindo a atividade.”
Reinhart ressalta que “a crise de crédito também tem efeitos distributivos, porque atinge de forma mais aguda as pequenas e médias empresas e as famílias de baixa renda”.
Extenso trabalho do Banco Mundial em 2019 mostrou que todas as grandes ondas de endividamento no passado terminaram em “crises financeiras”, sobretudo nos emergentes —incluindo a crise da dívida dos países latino-americanos nos anos 1980; a asiática, em meados dos anos 1990; e o estouro da “bolha” dos créditos “subprime” nos Estados Unidos, no final dos anos 2000.
O Banco Mundial já considerava que o mundo se encaminhava para algo parecido antes mesmo da disparada do endividamento com a Covid-19.
Para José Júlio Senna, chefe do Centro de Estudos Monetários da FGV/Ibre e ex-diretor da Dívida Pública e Mercado Aberto do Banco Central, o endividamento global elevado “compromete o futuro”.
“Empresas endividadas investem menos, e, nesse caso, não importa que o crédito tomado seja a juro zero. O principal da dívida precisa ser pago, o que inibe novas despesas, investimentos e mesmo a captação de outros fundos no futuro.”
Segundo José Francisco de Lima Gonçalves, economista-chefe do Fator, o endividamento público muito elevado, e não somente o empresarial, torna-se um risco para a atividade futura.
“Quem compra os papéis de governos [pessoas físicas e empresas] não aposta na economia ou em seu crescimento, mas na proteção de seu dinheiro, e acaba sancionando o endividamento e os gastos dos países que emitem dívida”, afirma Gonçalves.
Isso geraria uma espécie de círculo vicioso, com os governos tendo que captar cada vez mais dinheiro no mercado para estimular uma atividade econômica que não decola.
Na semana passada, por exemplo, os governos de Espanha e Portugal ofereceram ao mercado títulos equivalentes a € 8 bilhões, pagando juros ao redor de 1% ao ano. Apesar da oferta “limitada”, a demanda de investidores explodiu e passou dos € 100 bilhões.
Atualmente, os Estados Unidos e a zona do euro financiam suas políticas expansionistas pagando taxas de juros negativas (abaixo da inflação) nos títulos que vendem ao mercado.
Os riscos do endividamento recorde também são grandes para o setor bancário, pois a crise provocada pela pandemia levou dezenas de países a flexibilizar regulamentações e a exigir menos provisionamento de caixa para enfrentar empréstimos inadimplentes; assim como a relaxar o rigor na classificação de risco de débitos antes considerados de difícil recebimento.
As mudanças sugerem que a extensão da inadimplência, e a precariedade de muitos créditos a receber pelos bancos, pode estar hoje subestimada, o que tende a se agravar em um contexto de economia em baixo crescimento.
Em relatório recente, o FMI sugere que, “com o esperado aumento das falências, parte da dívida privada pode migrar para o setor público por meio de resgates financeiros” —aumentando o endividamento estatal.
Para Gavyn Davies, do fundo americano Fulcrum Asset Management, algumas categorias de endividamento causam mais preocupação. Entre elas, as dívidas corporativas nos Estados Unidos e de empresas voltadas ao consumo mais prejudicadas pelas medidas de distanciamento social adotadas contra a Covid-19, sobretudo na Europa.
Nas economias avançadas, os bancos centrais vêm estimulando o aumento das dívidas privadas por meio da compra de seus títulos, como forma de manter as empresas à tona e financiar pacotes de ajuda.
Somente nos Estados Unidos, o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) aumentou de US$ 4,1 trilhões, em fevereiro de 2020, para US$ 7,4 trilhões, neste ano, a compra desses papéis.
Assim, além de as dívidas dos governos crescerem de forma acelerada na pandemia, empresas e bancos persistiram numa tendência de mais endividamento que ocorre desde o fim dos anos 2000.
À época, o mundo sofreu sua maior crise financeira, no biênio 2008-2009, desde o crash da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929.
Em artigo há alguns dias no jornal The Washington Post, Lawrence Summers, ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos e defensor da eficácia de políticas fiscais expansionistas, afirmou que, desta vez, devido à escala dos incentivos, os Estados Unidos podem estar pondo em risco a estabilidade financeira e o valor do dólar.
Em relatório recente, o FMI também alertou para o risco de aumento da inflação, apesar da baixa atividade econômica, se os bancos centrais continuarem muito agressivos em suas políticas de injeção de liquidez, como o Fed vem fazendo.
“Nesse contexto, as expectativas de inflação podem aumentar muito rapidamente, uma vez que os governos comecem a incorrer em grandes déficits fiscais”, diz o FMI.
O Fundo afirma que “a credibilidade pode ser prejudicada quando se considera que os bancos centrais conduzem a política monetária para manter baixos os custos dos empréstimos dos governos em vez de garantir a estabilidade de preços”.
Júlio Senna lembra, no entanto, que, nos nove anos que antecederam 2020, quando a pandemia se instalou, a inflação anual média nos países desenvolvidos foi de 1,5%, abaixo dos 2% geralmente perseguidos como meta.
Assim, seria bastante provável que o mundo já estivesse metido, antes da Covid-19, em um processo conhecido como “estagnação secular”.
Cunhado no fim dos anos 1930, o termo foi resgatado por Summers em 2013, considerando que o mundo rico enfrentava desaceleração da produtividade, menor intensidade de capital para projetos lucrativos, envelhecimento e baixo crescimento populacional.
O aumento da expectativa de vida e a piora da distribuição de renda também seriam fatores de freio ao consumo e estímulo à poupança —forças que já inibiam o crescimento global antes mesmo da nova montanha de dívidas provocada pelo coronavírus.