Clipping
Crédito consignado: Reclamações assombram esse tipo de empréstimo
O aposentado Pedro Penha está com uma dívida em uma instituição financeira em que nunca teve conta. Ao notar dinheiro a mais no saldo da aposentadoria, ele perguntou ao gerente da onde veio aquilo e descobriu que um correspondente bancário tinha depositado um empréstimo consignado em seu nome, que ele nunca autorizou nem pediu.
Esse tipo de crédito, que desconta o pagamento diretamente da aposentadoria, pensão ou salário, é um dos que têm os juros mais baixos. A taxa média é de 1,4% ao mês para servidores públicos, 1,7% ao mês para beneficiários do INSS e 2,3% ao mês para trabalhadores do setor privado. Porém, mesmo barato, o dinheiro não é bem-vindo quando não foi contratado.
Pedro deve R$ 5,5 mil, divididos em 84 parcelas de R$ 66, para uma instituição financeira que teve acesso aos seus dados sem ele saber. “Eles jogam o dinheiro na conta da pessoa sem perguntar se ela quer”, reclama. O aposentado foi aconselhado a contatar o correspondente bancário que concedeu o crédito e a falar com o INSS. Pedro fez isso, mas ainda não conseguiu se livrar do empréstimo.
A cobrança por crédito consignado não contratado é a principal reclamação atrelada a esse tipo de empréstimo, conforme o Sindec, que integra 27 Procons estaduais e 604 municipais. De janeiro a agosto, a entidade registrou 39 mil queixas sobre o tema, quase o triplo em relação ao mesmo período do ano passado.
Esse é um dos vários problemas ligados ao consignado que saltaram, a ponto de esse já ser o terceiro assunto mais demandado na plataforma Consumidor.gov.br. Foram 71 mil reclamações entre janeiro e agosto, quase o dobro em relação a igual período de 2020. Além da cobrança por empréstimo não contratado, as principais reivindicações no site atreladas ao consignado envolvem não entrega do contrato, portabilidade não efetivada, cobrança indevida e dificuldade para cancelar.
As demandas se multiplicam. De acordo com entidades de defesa do consumidor, outros problemas comuns são oferta abusiva, comercialização de cartão consignado como empréstimo consignado e limite legal da margem consignável, ou seja, da parte da renda que pode ser usada para pagar o crédito, não respeitada, causando superendividamento.
“O crédito consignado é muito importante e possui as melhores taxas de juros para o consumidor, mas acabamos vendo o produto de uma maneira negativa devido aos diversos problemas que temos em relação à oferta abusiva e às fraudes”, diz a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) em e-mail.
“O crédito será um dos fatores mais importantes para a recuperação econômica do país neste momento, mas precisamos corrigir esses problemas para que não tenhamos uma distorção no mercado.”
A Senacon diz que a solução passa pelo aprimoramento regulatório, diálogo e monitoramento contínuos e que conversa com todos os envolvidos, como Banco Central (BC), bancos e correspondentes bancários, entidades de defesa do consumidor e INSS. Algumas respostas ao problema já surgiram e o debate avança, mas em ritmo mais devagar do que a disparada de reclamações.
Os envolvidos destacam que o consignado é um instrumento de crédito importante, não um vilão das finanças. Contudo, só é saudável quando vendido segundo as regras do Código de Defesa do Consumidor e da Lei do Consignado.
“As audiências públicas com todos os envolvidos pegam fogo e ainda não se chegou a conclusões definitivas, porque o problema é gigante”, diz Ione Amorim, coordenadora do programa de serviços financeiros do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
Por trás da cobrança pelo crédito não contratado e da oferta abusiva está uma pergunta ainda não respondida: como os dados das pessoas estão acessíveis?
“Os consumidores recebem abordagens de tudo quanto é instituição financeira. Elas sabem detalhes sobre a pessoa. Há um problema crônico gravíssimo de vazamento de dados”, afirma Amorim.
A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) afirma que uma consultoria externa avaliou que não há vazamento de dados por parte dos bancos. “São sistemas sofisticados, os bancos jamais vazariam informações para outros bancos”, diz Amaury Oliva, diretor de relações com o consumidor e autorregulação da entidade.
O BC diz que cabe às instituições financeiras zelar pela segurança das contratações das operações de consignado. “Nesse sentido, essas instituições têm investido em tecnologia para reduzir os casos de fraudes e golpes”, diz, por e-mail.
Já o INSS afirma, por e-mail, que os dados dos beneficiários são sigilosos e que os servidores do órgão não são autorizados a fornecer informações sobre os segurados a instituições financeiras. Questionado sobre o que o tem feito para ajudar a resolver o problema da cobrança por crédito não contratado, o órgão disse apenas que há ferramentas sendo normatizadas desde 2018, mas não detalhou quais são.
As entidades de defesa do consumidor alertam que parte dos ofertantes de crédito consignado contatam consumidores sem parar, por telefone e WhatsApp. A oferta insistente acontece, em parte, porque essa modalidade de empréstimo tem baixíssimo risco de inadimplência para as instituições financeiras. Além disso, algumas instituições financeiras ainda induzem as pessoas a errar, conforme Henrique Lian, diretor da associação de consumidores Proteste.
“Parte das instituições financeiras fala para o consumidor sem educação financeira que ele tem um crédito liberado, como se fosse uma extensão da renda. A pessoa acha que é um limite que ganhou e acaba contratando uma operação de crédito por telefone sem saber”, afirma.
Apesar de o caminho para uma solução ainda ser longo, algumas respostas começam a surgir. Há pouco mais de um mês, o Conselho Monetário Nacional (CMN), o regulador, editou uma norma que reconhece a atuação dos correspondentes bancários digitais no Brasil. Eles são intermediários entre os bancos e as pessoas e ganham comissão para comercializar empréstimos. Essas figuras crescem em meio à digitalização dos serviços financeiros e andaram mais rápido que a regulação.
A nova regra determinou requisitos para a capacitação dos profissionais e uma política específica para contratações, para ajudar a diminuir as fraudes. Estabeleceu, ainda, as informações a serem enviadas ao BC pelos bancos que lidam com correspondentes. A norma entrará em vigor em 2022.
Outra resposta é a autorregulação adotada pela Febraban e pela Associação Brasileira de Bancos (ABBC), em janeiro de 2020, que pune correspondentes bancários que desrespeitem as regras de concessão de consignado. A norma determinou regras para dar transparência, combater o assédio comercial e qualificar os correspondentes, além de tratar da proteção dos dados dos consumidores.
Para combater o crédito não solicitado, a regra estabelece que os bancos precisam rechecar se de fato é aquela pessoa que pediu o empréstimo.
Participam da autorregulação 34 instituições financeiras que representam cerca de 99% do volume total da carteira de consignado no país. Os bancos que não aplicarem as sanções podem ser multados por conduta omissiva, com valores de R$ 45 mil até R$ 1 milhão.
Dos 60 mil correspondentes bancários monitorados, até agora, 550 receberam sanções, 270 foram advertidos e 114 tiveram atividades suspensas temporariamente.