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Crédito consignado mergulha num mar de problemas, apesar de barato

Fonte: Valor Investe - 24/09/2021 às 11h09

O aposentado Pedro Penha está com uma dívida em uma instituição financeira em que nunca teve conta. Ao notar dinheiro a mais no saldo da aposentadoria, ele foi perguntar ao seu gerente da onde veio aquilo e descobriu que um correspondente bancário qualquer tinha depositado um empréstimo consignado em seu nome, que ele nunca autorizou nem pediu.

Esse tipo de crédito desconta o pagamento diretamente da aposentadoria, pensão ou salário e é um dos que têm os juros mais baixos. A taxa média é de 1,4% ao mês para servidores públicos, 1,7% ao mês para beneficiários do INSS e 2,3% ao mês para trabalhadores do setor privado. Porém, mesmo baratinho, o dinheiro é zero bem-vindo quando não foi contratado.

Pedro deve R$ 5,5 mil, divididos em 84 parcelas de R$ 66, para uma instituição financeira que teve acesso aos seus dados sem ele saber. “Não dá para acreditar que isso aconteceu. Eles jogam o dinheiro na conta da pessoa sem perguntar se ela quer”, reclama.

O aposentado foi aconselhado a contatar o correspondente bancário que concedeu o crédito e a falar com o INSS. Pedro fez isso, mas ainda não conseguiu se livrar do empréstimo. “Liguei lá e não resolveram nada”, conta. “Eles fazem a bagunça e depois a gente é que tem que limpar.”

A cobrança por crédito consignado não contratado é, disparadamente, a principal reclamação atrelada a esse empréstimo, conforme o Sindec, que integra 27 Procons estaduais e 604 Procons municipais. Apenas de janeiro a agosto deste ano, a entidade registrou 39 mil reivindicações sobre o tema, quase o triplo em comparação aos primeiros oito meses do ano passado.

E esse é apenas um entre vários problemas ligados ao crédito consignado que saltaram, a ponto desse já ser o terceiro assunto mais demandado pelos consumidores na plataforma Consumidor.gov.br. Foram 71 mil reclamações entre janeiro e agosto de 2021, quase o dobro em relação ao mesmo período de 2020.

Além da cobrança por empréstimo não contratado, as principais reivindicações no site atreladas ao consignado ainda envolvem não entrega do contrato, portabilidade não efetivada, cobrança indevida e dificuldade para cancelar.

As demandas se multiplicam. De acordo com entidades de defesa do consumidor, outros problemas comuns são oferta abusiva, comercialização de cartão consignado como empréstimo consignado e limite legal da margem consignável, ou seja, da parte da renda que pode ser usada para pagar o crédito, não respeitado, causando superendividamento.

O governo aumentou esse limite de 35% para 40% para aposentados, pensionistas e servidores públicos até o final deste ano, devido à pandemia. Para trabalhadores privados, esse limite continua sendo de até 30%.

“O crédito consignado é muito importante e possui as melhores taxas de juros para o consumidor, mas acabamos vendo o produto de uma maneira negativa devido aos diversos problemas que temos em relação à oferta abusiva e às fraudes”, afirma a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), por e-mail.

“O crédito será um dos fatores mais importantes para a recuperação econômica do país neste momento, mas precisamos corrigir esses problemas para que não tenhamos uma distorção no mercado.”

A Senacon diz que a solução passa pelo aprimoramento regulatório, diálogo e monitoramento contínuos e que está conversando com todos os atores envolvidos, como Banco Central, bancos e correspondentes bancários, entidades de defesa do consumidor e INSS. Algumas respostas ao problema já surgiram e o debate avança, mas em ritmo mais devagar do que a disparada das reclamações. Anda difícil de desatar esse nó com tantos envolvidos no emaranhado.

Todos, até as entidades de defesa do consumidor, destacam que o empréstimo consignado é um instrumento de crédito importante, não um vilão das finanças. Contudo, ele só é saudável quando vendido segundo as regras do Código de Defesa do Consumidor e da Lei do Consignado, o que muitas vezes não acontece.

“As audiências públicas com todos os envolvidos pegam fogo e ainda não se chegou a conclusões definitivas, porque o problema é gigante”, afirma Ione Amorim, coordenadora do programa de serviços financeiros do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Acesso as dados é um mistério
 
Por trás da cobrança pelo crédito não contratado e da oferta abusiva, especialmente aos aposentados, mais vulneráveis, está uma pergunta que ainda não foi respondida: como os dados das pessoas estão acessíveis?

“Os consumidores recebem abordagens de tudo quanto é instituição financeira. Elas sabem detalhes sobre a pessoa. Há um problema crônico gravíssimo de vazamento de dados”, afirma Amorim. Em alguns casos, as empresas que abordam os aposentados nem são de verdade.

A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) afirma que uma consultoria externa avaliou que não há vazamento de dados por parte dos bancos. “São sistemas sofisticados, os bancos jamais vazariam informações para outros bancos”, diz Amaury Oliva, diretor de relações com o consumidor e autorregulação da entidade.

O Banco Central afirma que cabe às instituições financeiras zelar pela segurança das contratações das operações de crédito consignado. “Nesse sentido, essas instituições têm investido em tecnologia para reduzir os casos de fraudes e golpes”, diz, por e-mail.

A autoridade monetária também afirma que atua no sentido de avaliar os controles que as instituições financeiras possuem para prevenir a ocorrência dessas situações e determinar as correções que se façam necessárias.

Já o INSS afirma, por e-mail, que todos os dados dos beneficiários são sigilosos e que os servidores do órgão não são autorizados a fornecer informações sobre os segurados a instituições financeiras. Questionado pela reportagem sobre o que o INSS tem feito para ajudar a resolver o problema da cobrança pelo crédito não contratado, o órgão disse apenas que existem ferramentas que estão sendo normatizadas na casa desde 2018, mas não detalhou quais são elas.

A quem tiver desconto em sua aposentadoria ou pensão referente a um empréstimo que não contratou, o INSS recomenda procurar diretamente a instituição financeira que concedeu o crédito. Também sugere que a pessoa cadastre sua manifestação na ouvidoria do INSS, por meio da central de teleatendimento 135 ou pelo site.

“O requerimento será analisado e o desconto poderá ser suspenso, conforme resposta da instituição financeira. Seguindo esse passo, ele pode bloquear o desconto e reaver as parcelas debitadas de forma indevida”, afirma o INSS.

“Vale destacar que nenhum órgão, empresa ou pessoa física tem autorização para efetuar qualquer atividade de marketing ativo, oferta comercial, propostas ou firmar contratos de empréstimo pessoal com pagamento mediante desconto direto no benefício em nome do INSS”, diz o órgão.

Ofertas são excessivas e induzem ao superendividamento
 
Um estudo divulgado pelo Banco Central apontou o risco de alto endividamento dos beneficiários do INSS que tomam empréstimos consignados. Segundo o BC, há indicações de que o crédito consignado é uma fonte importante de caixa para os aposentados e pensionistas. Cerca de 70% dos tomadores, afirma, se concentram na faixa de renda até dois salários mínimos.

“Porém, se por um lado esse crédito representa volume importante de recursos em um primeiro momento para os aposentados e pensionistas, por outro pode gerar uma redução relevante de sua renda disponível ao longo do tempo”, diz o estudo, publicado como boxe no relatório de economia bancária em junho.

“Assim, o crédito consignado pode funcionar para parcela do público aposentado como porta de acesso ao sistema financeiro devido à possibilidade de aferição de uma renda formal que serve de garantia ao empréstimo", afirma.

"Contudo, o fato de a renda preponderante entre os tomadores ser baixa e o comprometimento de renda ser usado em muitos casos próximo ao limite indica que há que se considerar tanto o fator de risco que um alto endividamento pode representar para o indivíduo quanto o potencial de demanda por recursos financeiros ainda não atendida."

As entidades de defesa do consumidor alertam que parte dos ofertantes de crédito consignado contata consumidores sem parar, por telefone e WhatsApp. A oferta insistente acontece, em parte, porque essa modalidade de empréstimo tem baixíssimo risco de inadimplência para as instituições financeiras. Além disso, algumas instituições financeiras ainda induzem as pessoas a errar, conforme Henrique Lian, diretor da associação de consumidores Proteste.

“Parte das instituições financeiras fala para o consumidor sem educação financeira que ele tem um crédito liberado, como se fosse uma extensão da renda. A pessoa acha que é um limite que ganhou e acaba contratando uma operação de crédito por telefone sem saber”, afirma.

Essa indução ao erro acontece ainda, por exemplo, quando o refinanciamento é oferecido com o nome de portabilidade. Ao fazer portabilidade, o consumidor muda a dívida de banco para ter juros mais baixos, mas o prazo e o valor do empréstimo continuam os mesmos. Já ao refinanciar, o prazo e o valor do empréstimo podem ser maiores e o empréstimo, no final das contas, pode ficar mais caro.

Apesar dos juros baixos e do limite de até 40% de comprometimento da renda com consignado, por lei, há consumidores que ficam com a renda comprometida acima desse limite. Isso acontece porque nem sempre as instituições financeiras checam o quanto da renda da pessoa está comprometida com empréstimos em outros bancos, de acordo com Lian.

“Muitos aposentados não contratam para si, e sim para família que quer ter a taxa de juros melhor, mas quem tem a renda comprometida é o aposentado”, diz o diretor da Proteste.

Amorim, do Idec, afirma que a falta de informação sobre crédito é um problema crônico. “Além do consumidor não ser orientado sobre riscos, é informado que o crédito é acessível, barato, seguro e renegociável. Essa linguagem faz as pessoas ficarem anos pagando um produto para resolver uma emergência, no desespero”, diz. “Na essência, o empréstimo não é ruim, mas as pessoas precisam de orientação.”

Aos consumidores cansados de receber ligações com ofertas de crédito insistentemente, especialistas aconselham se cadastrar no site Não Me Perturbe ou nas plataformas dos Procons estaduais.

Já para as pessoas que gostariam de contratar um empréstimo consignado, indicam nunca tomar crédito por impulso e planejar o orçamento para ter certeza de que as parcelas caberão no bolso. Também recomendam pesquisar taxas, começando pelo seu banco, em vez de clicar na primeira propaganda que aparecer.

Regulador cria normas para correspondentes bancários digitais

Apesar do caminho ainda ser longo, algumas respostas ao problemão do crédito consignado começaram a pipocar. Há pouco mais de um mês, o Conselho Monetário Nacional (CMN), o regulador, entrou mais forte nisso e editou uma norma que reconhece a atuação dos correspondentes bancários digitais no Brasil.

Eles são intermediários entre os bancos e as pessoas e ganham comissão para comercializar empréstimos e são chave na discussão. Essas figuras crescem no Brasil em meio à digitalização dos serviços financeiros e andaram mais rápido que a regulação.

A nova regra determinou requisitos para a capacitação dos profissionais e uma política específica para contratações, para ajudar a diminuir as fraudes. Estabeleceu, ainda, as informações a serem enviadas ao Banco Central pelos bancos que lidam com correspondentes. A norma entrará em vigor em 2022.

“No seu escopo de atuação, cabe ao Banco Central atuar no aprimoramento da regulação e da supervisão das operações de crédito em geral”, afirma a autoridade monetária, por e-mail. “Lembramos também que as reclamações registradas no Banco Central são importantes subsídios para as ações de supervisão de conduta e para o aprimoramento das normas aplicáveis.”

Autorregulação dos bancos pune correspondentes bancários
 
Outra resposta ao problema do crédito consignado que apareceu até agora foi a autorregulação adotada pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e pela Associação Brasileira de Bancos (ABBC), em janeiro de 2020, que pune correspondentes bancários que desrespeitem as regras de concessão de empréstimo consignado.

A norma determinou regras para dar transparência, combater o assédio comercial e qualificar os correspondentes, além de tratar da proteção dos dados dos consumidores.

Para combater o crédito não solicitado pelo consumidor, a regra estabelece que os bancos precisam rechecar se de fato é aquela pessoa que pediu o empréstimo.

Participam da autorregulação 34 instituições financeiras que representam cerca de 99% do volume total da carteira de crédito consignado no país. Os bancos que não aplicarem as sanções podem ser multados por conduta omissiva, cujos valores variam de R$ 45 mil até R$ 1 milhão.

Dos 60 mil correspondentes bancários monitorados, até agora, 550 receberam sanções, 270 foram advertidos e 114 tiveram as atividades suspensas temporariamente. Ou seja, ainda há muito a fazer pela frente, mas as punições estão acontecendo.

Além disso, desde o começo da autorregulação, foram feitas 1,8 milhão de solicitações de bloqueios de telefone para o recebimento de ligações de oferta indesejadas sobre crédito consignado registradas na plataforma “Não Me Perturbe”.

Oliva, diretor de relações com o consumidor e autorregulação da Febraban, afirma que, por meio das punições, a entidade está trabalhando para diminuir as reclamações dos consumidores, que tem conversas frequentes com as entidades de defesa do consumidor, o Banco Central e o INSS.

Ele diz que a representante dos bancos tem dois grandes desafios: aperfeiçoar a oferta de crédito consignado, para que fiquem claras as condições do empréstimo contratado, e coibir o assédio comercial que incomoda as pessoas que não querem empréstimos.

Segundo Oliva, além de continuar aplicando as punições da autorregulação, os focos da Febraban agora são criar um modelo para punir correspondentes bancários pessoas físicas que atuam de forma irregular. Além disso, a entidade está elaborando um curso de ensino a distância para capacitar os profissionais que trabalham nos correspondentes bancários.

O diretor da representante dos bancos destaca a importância dessas empresas. “São vários Brasis e em muitas localidades não há agências bancárias. Os correspondentes bancários são importantes para levar os serviços até a ponta, mas têm o desafio de seguir as boas práticas do mercado”, afirma.

Ele também ressalta que não dá para demonizar o crédito consignado. “O produto representa 36% do crédito para pessoas físicas, tem as melhores taxas e ajuda a reduzir as desigualdades. Tem sido usado para auxiliar o consumidor no pagamento das dívidas mais caras. É um bom produto, desde que o consumidor deseje contratá-lo”, diz.

O Valor Investe procurou a Federação Brasileira dos Correspondentes Bancários (Febracon), mas não houve retorno até o fechamento da reportagem.

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