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A largada dada pela Lei do Superendividamento
No atual contexto de crise econômica enfrentado pelo país, estima-se que até 70% da população esteja endividada e que mais de 30 milhões de pessoas estejam em situação de superendividamento (segundo dados do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC). Essa condição é caracterizada pela incapacidade de arcar com suas dívidas sem prejudicar o próprio sustento básico, denominado “mínimo existencial”.
Em vigor há pouco mais de dois meses, a Lei nº 14.181/2021, chamada de Lei do Superendividamento, instituiu novas regras para o combate a esse cenário e para a tutela da saúde financeira do consumidor.
Ela traz duas principais preocupações: a prevenção e o tratamento da situação de superendividamento. No tocante à prevenção, a Lei atribui aos órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor a responsabilidade pela promoção de medidas de educação financeira dos consumidores e imputa aos fornecedores a observância de regras para oferta e negociação de crédito, visando tornar mais consciente o seu consumo no país. Em relação ao tratamento da situação de superendividamento em si, a Lei prevê ferramentas e procedimentos para renegociação extrajudicial e judicial dos créditos.
Os PROCONs têm promovido programas para atendimento dos consumidores superendividados. No estado de São Paulo, por exemplo, o PROCON/SP anunciou o lançamento da “Central do Superendividamento”, ferramenta que possibilita ao consumidor endividado a renegociação de suas dívidas e, na hipótese de insucesso, o encaminhamento do caso à Defensoria Pública para adoção de medidas judiciais. Programas similares também já foram desenvolvidos pelos PROCONs locais em João Pessoa, Maceió, Fortaleza e Goiânia. Já em Pernambuco, mutirões têm sido organizados para fornecer orientações sobre a prevenção e o combate ao superendividamento.
No âmbito judicial, a Lei do Superendividamento já tem sido utilizada como fundamento para o julgamento de processos em curso. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por exemplo, reformou sentença em demanda proposta contra empresa de crédito para reconhecer a situação de superendividamento do consumidor e restringir o percentual de descontos em seu contracheque para quitação de dívida contraída.
No Mato Grosso, a Lei foi lembrada pelo Tribunal de Justiça como importante marco à proteção dos hipervulneráveis, dentre eles a consumidora autora da demanda, uma mulher indígena superendividada. O acórdão indicou a importância da proteção legal para evitar que consumidores celebrem contratos onerosos demais ou pouco vantajosos sem total conhecimento das consequências do inadimplemento.
Em Goiás, a Lei também serviu como fundamento à decisão proferida pelo Tribunal de Justiça para reconhecer danos morais advindos de oferta e negociação de crédito sem a clareza e transparência exigidas pelas normas consumeristas e agora reforçadas pelo novo regime de combate ao superendividamento.
Embora a Lei já esteja na pauta do Poder Judiciário e dos órgãos administrativos de defesa do consumidor, há um longo caminho a ser percorrido para sua consolidação definitiva. Isso porque a Lei ainda depende de regulamentação complementar, sobretudo para definição de aspectos práticos da execução da norma, como, por exemplo, a forma de requerimento da conciliação judicial para renegociação de dívidas; a exigência ou não da presença de um advogado na esfera judicial para representação do consumidor; e a eventual definição de valores mínimos e máximos para possibilitar os procedimentos de renegociação.
No âmbito acadêmico, a lei e os seus contornos práticos também vêm sendo amplamente discutidos. Em 17 de agosto de 2021, foi realizada a “I Jornada CDEA sobre Superendividamento e Proteção do Consumidor UFRGS-UFRJ”. O evento, organizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, contou com a participação de outras universidades, de entidades da sociedade civil e de diversos especialistas. Como resultado, foram editados 25 enunciados que visam orientar a interpretação e a aplicação da lei pelos juristas.
Apesar da reconhecida importância da lei para a prevenção e tratamento do superendividamento, a inovação legal não passou livre de críticas dos estudiosos do direito e da economia. Há discussões sobre problemáticas colaterais, como a possível geração de elevados custos para que grandes credores, como o setor bancário e de varejo, participem em cada um dos múltiplos processos de renegociação de dívidas (judiciais ou não).
Ainda, há quem receie que ocorra repasse desses custos nos preços dos produtos e serviços ou mesmo haja ainda mais sobrecarga da estrutura administrativa e judicial com a absorção do grande volume de procedimentos dessa natureza – de acordo com o Conselho Nacional de Justiça, entre os assuntos mais demandados do ano de 2019, no âmbito dos tribunais estaduais, o Direito do Consumidor está em primeiro lugar, com 4,4% do total de processos, 2.295.880 em números absolutos[1].
O balanceamento da equação financeira entre credores e devedores segue sendo um desafio jurídico, econômico e social. Como vimos, a largada já foi dada pela Lei do Superendividamento, mas apesar de ela representar um passo importante à evolução do sistema de consumo no Brasil, há ainda uma longa maratona, exigindo esforços conjuntos de consumidores, fornecedores e Poder Público para superação dos obstáculos e para cruzamento da linha de chegada aos tão almejados equilíbrio e harmonia, cerne de todas as relações de consumo.