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‘Brasil precisa renovar análise de crédito’

Fonte: Valor Econômico - 11/05/2021 às 10h05
A pandemia vai tornar necessário que as instituições financeiras repensem a forma como fazem a análise de crédito, principalmente em um país como o Brasil, com uma das crises mais severas de covid-19. Na visão do especialista em economia comportamental Dan Ariely, professor da Universidade de Duke, nos EUA, o crédito tem um papel fundamental para a recuperação das economias no médio e longo prazo e os bancos, fundamentalmente, se mantêm presos a sistemas ultrapassados na hora de avaliar a capacidade de pagamento de pessoas e empresas.
 
Em entrevista ao Valor, Ariely, que é autor de livros como “Previsivelmente Irracional” e “A Psicologia do Dinheiro”, junto com o amigo e colaborador Saul Fine, fundador da Innovative Assessment (IA) e PhD em psicologia, criticaram o sistema atual de avaliação de perfil de bom pagador das instituições, que se baseia em um histórico. Após a pandemia e a crise econômica que paralisou setores inteiros, a fórmula não funciona mais, argumentam os especialistas.
 
Ariley e Fine desenvolveram juntos um novo modelo de previsão de capacidade de pagamento de dívidas sob o ponto de vista psicológico. Esse sistema já tem sido utilizado em forma piloto por algumas fintechs brasileiras para incluir desbancarizados.
 
“Como forma de sair da [crise da] covid-19 com razoável estabilidade econômica, o Brasil tem de descobrir uma forma de conceder mais crédito”, diz Ariely. “E o crédito tem de ir aos pequenos negócios, os motores do crescimento.”
 
Conforme o pesquisador, as mudanças drásticas causadas pela pandemia tornam falho o uso de dados passados na previsão do comportamento futuro do tomador. Segundo Ariely, as análises de risco atuais vão excluir o acesso ao crédito aqueles que mais precisam, ou seja, grande parte dos pequenos e médios empreendedores afetados diretamente pela pandemia. Leia os principais trechos da entrevista.
 
Valor: Quais riscos vão permanecer após a pandemia?
 
Dan Ariely: A covid-19 é uma tragédia de proporções dramáticas. Mas, enquanto o vírus deve ir embora em breve, espero, com ajuda da vacinação, as consequências em termos de confiança pública, trauma e devastação econômica poderão levar um longo tempo para serem superadas. O vírus tem uma vacina, mas o sistema econômico não tem algo tão simples como uma vacina [para se curar]. Para se recuperar, nós precisamos tomar uma atitude dramática. E precisa ser em larga escala. Então, o que vai nos salvar economicamente? Na minha visão, será a economia local. Sim, o governo pode gastar um monte de dinheiro por algum tempo e, enquanto imprimem mais dinheiro, pode fazer as coisas parecerem melhores. O governo pode enviar cheques aos indivíduos, mas nada disso vai durar muito tempo. Isso basicamente é emprestar dinheiro do futuro, que em algum ponto teremos de pagar de volta. E frequentemente com juros.
 
Valor: Qual a solução?
 
Ariely: Nossa esperança financeira não está na impressão de dinheiro pelo governo. Então onde estaria? Na minha opinião, é revigorar a economia local. O que precisamos fazer é dar a mais pessoas a oportunidade de se tornarem donos de pequenos negócios. Nós necessitamos que mais pessoas se reinventem, como começar novos negócios e prover novos serviços. Para cada pequeno negócio criado, há inovação, renovação de valores, pessoas sendo contratadas e produtos sendo consumidos. Se nós pensarmos no que vai salvar muitos milhões de pessoas que estão atualmente desempregadas ou subempregadas, será a revigoração dos pequenos negócios e isso é algo que temos de fazer e fazê-lo com firmeza.
 
Valor: Os pequenos negócios têm sofrido com a crise no Brasil. É possível salvá-los?
 
Ariely: Quando se trata de pequenos negócios, o Brasil está em uma posição difícil, porque os pequenos negócios e os indivíduos têm dificuldades no acesso ao crédito. Mas se queremos revigorar a economia, temos de possibilitar aos pequenos negócios e pessoas a conseguir tomar emprestado. Imagine uma pessoa que quer começar um novo negócio, mas precisa ter certeza que vai conseguir manter o sustento de sua família pelos próximos três meses ou ainda um pequeno negócio que apenas quer se manter na ativa e tem de adquirir suprimentos. Como essas pessoas e empreendedores poderão começar? O sistema brasileiro em geral não é simples em termos de emprestar dinheiro. Mas o problema, na verdade, é mais profundo. Não é apenas a facilidade de acessar o crédito, mas também a questão da [comprovação de] capacidade de pagamento que é um ponto particularmente complicado para qualquer sistema que se baseia no ‘score’ de crédito. Imagine a vida há três anos, antes da covid-19, onde uma pessoa se comporta de certa maneira, paga suas contas e faz empréstimos. Essa pessoa tem um histórico, uma lista de coisas que fez ou não, de contas pagas ou atrasadas. E então a pessoa tem um score de crédito, que, de algum modo, funcionaria como uma prévia da habilidade de pagamento. Porém, chegou a covid. A pandemia foi um ano no qual muitas pessoas perderam o emprego ou parte da renda. No momento, o histórico acumulado no último ano não é indicativo de sua verdadeira habilidade de pagar. Trata-se mais de um indicativo de quão sem sorte essa pessoa foi. Imagine duas pessoas com têm perfis semelhantes de crédito. Uma delas trabalha para uma companhia de tecnologia e outra tem um pequeno negócio que presta serviços para músicos ou ainda que faz fotos para eventos. Ainda que em períodos anteriores tenham tido notas de crédito parecidas, vamos dizer que a covid tenha terminado e os dois precisem de dinheiro e peçam aos mesmos bancos. Se olhar apenas o histórico do ano passado, a instituição vai dizer que apenas a pessoa que trabalha na empresa de tecnologia não terá problema [em pagar o financiamento]. O fotógrafo ou o produtor musical terão o crédito negado. Mas os profissionais autônomos realmente precisam do dinheiro para começar de novo. Tudo o que a pessoa da empresa de tecnologia não precisa. O score de crédito não tem nada a ver com caráter, perfil, motivação e determinação. A dedicação do indivíduo e o quão duro ele trabalha são crucialmente importantes.
 
Valor: É possível mudar a forma de avaliar perfil de crédito?
 
Ariely: Como forma de sair da covid com uma estabilidade econômica razoável, o Brasil terá de descobrir como dar mais crédito. E o crédito tem de ir para os pequenos negócios, que são os motores do crescimento. Se o crédito for concedido baseado apenas nos scores cíclicos, essas notas não vão levar em conta [de forma apropriada] o período da covid. Se nós continuarmos a usar o velho score de crédito, há risco de o crescimento econômico não ser o que nós precisamos que seja.
 
Valor: Qual a alternativa?
 
Saul Fine: O modelo psicométrico de crédito pode ser uma opção. A psicometria é uma forma científica e estruturada de medir as competências pessoais de um indivíduo, como disposições, atitudes, opiniões e habilidades. As competências são, frequentemente, indicativas de como as pessoas se comportam ou vão se comportar em diferentes situações. Para ser um bom pagador, além da capacidade financeira em si, a pessoa, por exemplo, precisa ser responsável, organizada, cautelosa e confiável. Há ainda o problema que os desbancarizados enfrentam. No Brasil, por exemplo, de acordo com o Banco Mundial, há 50 milhões fora do sistema financeiro, o que representa cerca de um em cada três adultos do país. As pessoas desbancarizadas frequentemente não têm um score de crédito. Apesar disso, o Brasil tem um crescente ecossistema de fintechs, que pode ser capaz de prover novos serviços, tais como uma alternativa ao score de crédito.

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