Clipping
Idosos são vítimas da fraude do empréstimo consignado
Após uma vida trabalhando na roça, a dona Dinacir de Lima Fioreze, 56 anos, era uma recém-aposentada rural em dezembro de 2020. Naquele mês, recebeu o seu primeiro benefício do INSS, de R$ 1,1 mil, o que lhe permitia planejar dias mais tranquilos na pequena propriedade em que vive com a família e planta uvas no interior de São Marcos, na Serra.
Mas uma tormenta se aproximou dos Fioreze quando a filha de Dinacir, Elenita, de 28 anos, foi conferir o aplicativo do banco no início de abril. Naquela ocasião, havia algo errado: um depósito de R$ 13,4 mil tinha ingressado na conta de Dinacir, ao mesmo tempo em que uma prestação de R$ 325,50 havia sido subtraída. Ninguém sabia do que se tratava.
— Ficamos surpresos. Perguntamos à mãe se ela tinha algo a receber ou se estava precisando de dinheiro. Ela disse que não. Fizemos coisas que nunca tínhamos feito na vida, como ir à delegacia de polícia registrar queixa e buscar advogado — conta Elenita.
A família precisou fazer um longo périplo até entender o que estava acontecendo. O crédito de R$ 13,4 mil tinha sido feito pelo C6 Bank, um empréstimo consignado alegadamente sem autorização.
O desconto de R$ 325,50, que consumia quase um terço da aposentadoria, era a primeira parcela de quitação da dívida.
— Não recebi nenhuma oferta, não assinei nada, não pedi e não estava precisando. Me senti enganada. Pensei: estão me roubando. Me depositaram um dinheiro, mas quando descontarem todas as prestações, estarei dando dinheiro para eles — desabafa Dinacir.
O consignado atribuído a ela foi feito em 84 parcelas de R$ 325,50, o que irá totalizar R$ 27,3 mil em pagamentos, pouco mais do que o dobro do depositado pelo C6 Bank.
Orientada por advogados, Dinacir bloqueou a conta bancária e não fez nenhuma movimentação no dinheiro indesejado. Deixou o montante imobilizado e pediu a emissão de guia para depositar em juízo, em ação declaratória de inexistência do empréstimo consignado. Em 14 de maio deste ano, a Justiça determinou em decisão liminar a suspensão dos descontos das parcelas do benefício.
— Fomos lesados. Nem sabíamos da existência desse banco até isso acontecer — diz Elenita.
Esquema
Os Fioreze foram possíveis vítimas da fraude do empréstimo consignado, prática que tomou volume a partir do segundo semestre de 2020, prejudicando milhares de idosos. Dados do Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (Sindec) mostram que as reclamações por crédito consignado irregular, em todo os sistema bancário, cresceram 12,78% de 2019 para 2020, passando de 29.551 para 33.329. Na base de dados do Portal do Consumidor, do governo federal, as reclamações mais do que dobraram, saltando de 39.688 para 89.688, no mesmo período — alta de 124,45%.
Fontes do ramo que não compactuam com as irregularidades explicam, sob anonimato, a forma mais recorrente do suposto golpe. O método é confirmado por autoridades que fiscalizam e estão emitindo punições, como a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), órgão ligado ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública.
A origem estaria em uma parcela de correspondentes bancários, empresas terceirizadas que trabalham para diversas instituições financeiras e captariam clientes sem observar as boas práticas. Eles preencheriam em plataformas virtuais fornecidas pelos bancos os pedidos de empréstimo consignado. Usariam documentações de idosos que constam nos arquivos das suas lojas ou que são possivelmente compradas no mercado de vazamento de dados.
Após inseridas as informações do aposentado no sistema, falsificariam a assinatura da vítima no contrato. Como haveria pouca conferência e os processos são eletrônicos, os dados supostamente forjados costumam passar sem contestação por bancos que, por meio dos seus canais de desconto no INSS/Dataprev, conseguem depositar os créditos e averbar as parcelas no benefício dos aposentados.
Presidente da Associação Nacional dos Profissionais e Empresas Promotoras de Crédito e Correspondentes no País (Aneps), Edison Costa define a falsificação de assinaturas como o "nascedouro das fraudes". Ele diz que a entidade de classe apresentou ao governo federal proposta que prevê a adoção de sistema unificado de assinaturas digitais, certificadas por cartórios de fé pública. Um contrato de empréstimo consignado somente poderia ser contabilizado após os bancos, correspondentes e órgãos públicos terem o certificado digital atestando a lisura da assinatura do aposentado, contando com o reforço da biometria facial.
— Estamos na luta para convencer os bancos a adotarem esse sistema. É a base para remover grande parte das fraudes. Elas acontecem quando um cliente tem um contrato contabilizado sem sequer ter autorizado. Eu mesmo já fui vítima de consignado indesejado, também sou aposentado. A fraude começa na assinatura — diz Costa.
Titular da Senacon, Juliana Domingues avalia que a situação é grave e prioritária.
— Existe um compromisso para criar mecanismos de punição aos correspondentes que não estejam agindo de boa-fé e utilizando dados que não foram compartilhados com anuência do consumidor — afirma Juliana, ao anunciar força-tarefa com INSS e Ministério da Economia para coibir as fraudes.
A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) informou que, de janeiro a abril de 2021, 196 correspondentes bancários tiveram suas atividades temporariamente suspensas devido à identificação de irregularidades em operações de crédito consignado. Outros 21 sofreram "interrupção permanente" das atividades pelo mesmo motivo.
Para cada contrato fechado, seja ele legal ou forjado, os correspondentes bancários costumam receber comissão variável de 10% a 17% sobre o valor total do empréstimo. Em 25 de junho, o C6 Bank apresentou sua defesa no processo judicial da dona Dinacir e juntou um contrato, feito por correspondente, cuja assinatura apresenta possíveis indícios de falsificação se comparada com a da documentação da vítima. A defesa de Dinacir requisitou prova pericial grafotécnica para apurar a veracidade.